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domingo, 24 de julho de 2011

Fernando Pessoa ou Fernando em Pessoas






Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade,
De rosas —

Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão cedo!

Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta.

 

 

O menino da sua mãe  

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
— Duas, de lado a lado —,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! Que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe.
Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço...
Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo e bem!»
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.

              Fernando Pessoa


Pobre velha música!

Pobre velha música! 
Não sei por que agrado, 
Enche-se de lágrimas 
Meu olhar parado. 
Recordo outro ouvir-te, 
Não sei se te ouvi 
Nessa minha infância 
Que me lembra em ti.
Com que ânsia tão raiva 
Quero aquele outrora! 
E eu era feliz? Não sei: 
Fui-o outrora agora. 
Fernando Pessoa


Ela canta, pobre ceifeira

Ela canta, pobre ceifeira, 
Julgando-se feliz talvez; 
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia 
De alegre e anônima viuvez, 
Ondula como um canto de ave 
No ar limpo como um limiar, 
E há curvas no enredo suave 
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece, 
Na sua voz há o campo e a lida, 
E canta como se tivesse 
Mais razões pra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão ! 
O que em mim sente 'stá pensando. 
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando !
Ah, poder ser tu, sendo eu ! 
Ter a tua alegre inconsciência, 
E a consciência disso ! Ó céu ! 
Ó campo ! Ó canção !
A ciência Pesa tanto e a vida é tão breve ! 
Entrai por mim dentro ! Tornai 
Minha alma a vossa sombra leve ! 
Depois, levando-me, passai !

Fernando Pessoa







Quero,terei;
Se não aqui;
Noutro lugar que ainda não sei.
Nada perdi;
Tudo serei




AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.


O Guardador de Rebanhos


Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Com um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes,
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos.
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita coisa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva toda.

Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,
Eu olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predilecta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer coisa natural

Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.

Alberto Caeiro




Trecho da Poesia SAUDAÇÃO A WALT WHITMAN Alvaro de Campos 


Não sei se estou aqui, de pé sobre a terra natural, 
Ou de cabeça pra baixo, pendurado numa espécie de estabelecimento, 
No tecto natural da tua inspiração de tropel, 
No centro do tecto da tua intensidade inacessível. 

Abram-me todas as portas! 
Por força que hei-de passar! 
Minha senha? Walt&Whitman! 
Mas não dou senha nenhuma... 
Passo sem explicações... 
Se for preciso meto dentro as portas... 
Sim – eu, franzino e civilizado, meto dentro as portas, 
Porque neste momento não sou franzino nem civilizado, 
Sou EU, um universo pensante de carne e osso, querendo passar, 
E que há-de passar por força, porque quando quero passou Deus! 

Tirem esse lixo da minha frente! 
Metam-me em gavetas essas emoções! 
Daqui pra fora, políticos, literatos, 
Comerciantes pacatos, polícia, meretrizes, souteneurs, 
Tudo isso é a letra que mata, não o espírito que dá a vida. 
O espírito que dá a vida neste momento sou EU! 

Que nenhum filho da puta se me atrevesse no caminho! 
O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim!

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