Teatro infantil sem infantilidades
Teatro infantil é termo pejorativo em Portugal. Lá se diz teatro para a infância – e juventude – ou, mais respeitosamente ainda, teatro ao jovem público. Há mais de 30 anos vivendo naquele país, o ator e diretor brasileiro José Caldas afirma que infantis são as brincadeiras que fazem as crianças, mas que nem por isso se deve fazer para elas um teatro limitado a infantilidades, a exemplo do que vê na maioria dos espetáculos dirigidos a este público no Brasil. “Tenho muito respeito pelas crianças”, pontua. Mineiro de Itanhandu, Caldas construiu uma carreira premiada adaptando e introduzindo textos de autores brasileiros como Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Jorge Amado, Cecília Meireles e Clarice Lispector em palcos de Portugal, Itália, França e agora da Espanha. Orgulha-se de ter apresentado Lygia Bojunga Nunes à crítica portuguesa. Também recorre a outros sul-americanos como García Márquez e aos da terra como Agostina Bessa Luis, Miguel Torga e Manuel António Pina.
José Caldas critica estilo dos espetáculos
para crianças no Brasil
para crianças no Brasil
Quando trabalhava com Ziembinsky, Antonio Abujamra e Vitor Garcia no início dos anos 70, José Caldas usava o tempo livre para promover comícios relâmpagos contra a ditadura, nas ruas do Rio de Janeiro. Depois de preso, viu-se obrigado a ir embora para a França, onde trabalhou em hotel, estudou francês e mímica, morando em seguida na Inglaterra. Sentiu saudades na língua. Ao aportar em Portugal eclodia a Revolução dos Cravos e os artistas ocupavam casas vazias para transformá-las em teatros.
Caldas esteve na Unicamp no dia 3 de agosto, apresentando o espetáculo O Medo Azul, concebido a partir do conto Barba Azul de Charles Perrault, com intertextos dos irmãos Grimm e de Barbe Rouge, conto popular bretão. Veio a convite da amiga e professora Joana Lopes, do Departamento de Dança do Instituto de Artes, e acompanhado do ator e dançarino Alberto Magno, outro brasileiro (paulistano) que assimilou o sotaque português assim como o diretor com quem trabalha de longa data, inclusive como fotógrafo de muitas das montagens.
O Medo Azul foi um evento promovido pelo Departamento de Artes Cênicas, com gestoes da professor Heloisa Villaboim para fazer parte da programação do Ano 40 da Unicamp, tendo uma platéia especial de crianças do programa educativo voltado aos filhos dos funcionários da Universidade (Prodecad). O diretor ainda participaria de um debate com alunos das Artes, mas horas antes já antecipava ao Jornal da Unicamp muito do que pensa sobre o teatro para infância e juventude. “Noto que no Brasil esse teatro torna-se cada vez mais um estilo, um gênero terrível, de texto inócuo e atores vestidos com rabos e orelhas”, fulmina.
Na visão de Caldas, por conta deste estilo infantilizado e infantilizante, fazer teatro para o público jovem muitas vezes é visto como um trabalho menor, marginalizado e desprezado. “E nisto também me aproximo das crianças, que também marginalizadas como cidadãos, não têm direito a um teatro exclusivamente dedicado a elas”, afirma. Ele pensa que o teatro para crianças e jovens não designa um modelo, uma estética, uma moral ou uma pedagogia, mas simplesmente um público. “Minhas criações têm se caracterizado por ser teatro apenas, com toda a sua complexidade artística e humana. O que muitas vezes tem gerado polêmica porque ‘não são espetáculos para crianças’ ou ‘as crianças não entendem’ – o adulto-centrismo que caracteriza a nossa sociedade vê nas crianças meros objetos para educar, ou seres amorfos, indefesos e engraçados”, acrescenta.
Intertextos – É fato que autores brasileiros escolhidos pelo diretor não se consagraram escrevendo para crianças, embora às vezes o façam. Um recurso utilizado por José Caldas é a introdução de intertextos para facilitar a mensagem, o que fez ao montar A Menor Mulher do Mundo, de Clarice Lispector. “Eu estava angustiado com o racismo e achei que o texto servia muito bem, pois não falava da questão politicamente, mas poeticamente. Falava do sentimento de um explorador francês branco que encontra a menor mulher do mundo, uma pigméia negra, e se apaixona por ela. É um espetáculo extremamente natural, plasticamente forte e com o texto denso de Clarice. As crianças curtiram muito”.
Caldas montou outros dois escritos da brasileira, A Vida Íntima de Laura e A Mulher que Matou os Peixes, onde se faz a discussão sobre a morte. Segundo Caldas, Clarice se transformou na fonte em que bebe a recente literatura feminina portuguesa, mas a crítica a considerava, definitivamente, imprópria para crianças. “Acontece que as reações eram espantosas. Quando escolas enviam suas crianças ao teatro, temos o costume de promover uma conversa no final. E as questões que elas levantam são fundamentais, filosóficas. No conto, a autora diz que matou os peixes porque eles não falam – um gato a arranharia para pedir comida, como os peixes não dão qualquer sinal, ela se esqueceu. No texto, ela pede perdão. No público, uma criança reagiu com personalidade: não te perdôo!”.
Caldas lembra ainda a inusitada reação das crianças em A Corda Bamba, onde Lygia Bojunga Nunes conta a história de uma mendiga idosa que morre de tanto comer. A cena chocaria aos adultos, mas as crianças morreram de rir. Barba Azul e seus assassinatos em série também seria história imprópria para menores, mas o diretor quis discutir propositadamente a existência de assassinos, pois mesmo em Portugal cresce o número de mulheres mortas anualmente por seus maridos. “O marido mata a mulher no contexto onde estão as crianças”, observa a professora Joana Lopes. “Eu não queria abordar o comezinho, arte não é para isso. Por isso recorri à história que minha avó contava, com todos os detalhes sangrentos, e misturei outras versões de Barba Azul. Por que não falar de assassinos com as crianças se eles por aí?”, questiona o diretor.
Marketing – José Caldas apresentou O Medo Azul no último Encontro para Intercâmbio de Linguagem para Crianças, que reuniu no Rio grupos do Brasil, França, Canadá e Portugal. Assustou-se com a superficialidade do meio, onde a preocupação é obter verbas de patrocinadores como Petrobras, Telemar e prefeituras para produzir qualquer coisa. “Não existe uma filosofia por trás do teatro para o público jovem e os espetáculos são todos parecidos. Senti algo imoral, pois se gastou muito dinheiro para trazer esses grupos e pouquíssimas pessoas assistiram. Vi uma grande falta de respeito, puro marketing em cima das crianças. O cartaz do festival parecia coisa de Chiquititas, retratando uma criança tendo em volta um mundo de florzinhas”.
Depois da Unicamp, Caldas apresentaria sua peça em São Paulo, São Luís e Teresina. Sempre em salas de espetáculos, pois não gosta do recurso de percorrer escolas, em montagens improvisadas. “As crianças precisam ter acesso a um lugar de convívio social que o teatro lhes dá. Dentro de uma escola o espetáculo perde a metade da graça. E é bonito ver crianças que viram as sessões oferecidas a escolas durante a semana, trazendo pela mão os pais, irmãos e tios nos sábados e domingos”.
Malhação e Morangos com Açúcar
A professora Joana Lopes, que foi crítica de teatro por anos, não vê os autores brasileiros tão preocupados em atingir crianças e jovens. Ela e o diretor José Caldas recordam, no entanto, de um momento muito estimulante no período de redemocratização do país, quando participaram do esforço para a criação do Centro Brasileiro de Teatro da Infância e da Juventude (CBTIJ), com bons autores e diretores despertando para esse público. “Mas aquela onda de esperança e de estímulo intelectual foi se esvaziando, no conteúdo e na forma, que foram substituídas por um olhar caritativo da arte em relação às crianças e adolescentes. Isso se espalhou pelo Brasil, o que faz parte da ideologia neoliberal”, critica.
Joana Lopes observa que o teatro para adolescentes, por exemplo, é ausente, e que o espaço de comunicação reservado a eles é o programa Malhação, da Rede Globo, onde o cotidiano é muito bem situado na classe média. “No mais, tanto no teatro quanto na dança, os temas sobre as relações e indagações dos adolescentes inexistem”, afirma. Segundo José Caldas, que durante dez anos participou de um projeto de teatro na escola em Portugal, o agravante no programa de televisão é o de refletir o que os adultos acham que os jovens são e pensam. “Os jovens têm as mesmas preocupações existenciais e filosóficas, problemas tão complexos como dos adultos e que nada têm a ver com as idiotices que aparecem na tela”.
A série Malhação foi exibida por muitos anos em emissoras de Portugal, mas o sucesso do momento é uma imitação, Morangos com Açúcar. “As novelas brasileiras influenciaram muito na forma de vestir, na dinâmica da linguagem, nas gírias”, observa o ator e dançarino Alberto Magno, que saiu do Brasil em 1991 para dar aulas de dança na Alemanha e depois se radicou em Portugal, envolvendo-se em atividades diversas como teatro, coreografia, fotografia, organização de festivais e projetos em educação. Trabalhando muito com esse público, Magno explica que a idéia de um teatro para a infância e juventude, em termos artísticos e educacionais, ainda é muito recente em Portugal e mesmo em outros países da Europa. “As fronteiras são um tanto indefinidas, havendo inclusive mistura de linguagem, como do teatro com a dança e as artes”.
No entanto, o diretor José Caldas ressalta que logo depois da Revolução dos Cravos fundou-se o Centro Português do Teatro da Infância e Juventude, com muito mais sucesso do que o centro brasileiro. “Conseguimos mudar a cara desse teatro no país. Participamos de uma associação internacional e promovemos anualmente um festival de grupos portugueses, com a participação de artistas de várias áreas para discutir o teatro da infância e juventude. Hoje raramente aparecem espetáculos infantilizados. Os artistas começaram a ser exatamente como são: artistas adultos que trabalham para o público jovem”.
Fotos de Alberto Magno, ator e dançarino, retirada do arquivo pessoal de Romildo Ernesto de Leitão Mendes
Caldas esteve na Unicamp no dia 3 de agosto, apresentando o espetáculo O Medo Azul, concebido a partir do conto Barba Azul de Charles Perrault, com intertextos dos irmãos Grimm e de Barbe Rouge, conto popular bretão. Veio a convite da amiga e professora Joana Lopes, do Departamento de Dança do Instituto de Artes, e acompanhado do ator e dançarino Alberto Magno, outro brasileiro (paulistano) que assimilou o sotaque português assim como o diretor com quem trabalha de longa data, inclusive como fotógrafo de muitas das montagens.
O Medo Azul foi um evento promovido pelo Departamento de Artes Cênicas, com gestoes da professor Heloisa Villaboim para fazer parte da programação do Ano 40 da Unicamp, tendo uma platéia especial de crianças do programa educativo voltado aos filhos dos funcionários da Universidade (Prodecad). O diretor ainda participaria de um debate com alunos das Artes, mas horas antes já antecipava ao Jornal da Unicamp muito do que pensa sobre o teatro para infância e juventude. “Noto que no Brasil esse teatro torna-se cada vez mais um estilo, um gênero terrível, de texto inócuo e atores vestidos com rabos e orelhas”, fulmina.
Na visão de Caldas, por conta deste estilo infantilizado e infantilizante, fazer teatro para o público jovem muitas vezes é visto como um trabalho menor, marginalizado e desprezado. “E nisto também me aproximo das crianças, que também marginalizadas como cidadãos, não têm direito a um teatro exclusivamente dedicado a elas”, afirma. Ele pensa que o teatro para crianças e jovens não designa um modelo, uma estética, uma moral ou uma pedagogia, mas simplesmente um público. “Minhas criações têm se caracterizado por ser teatro apenas, com toda a sua complexidade artística e humana. O que muitas vezes tem gerado polêmica porque ‘não são espetáculos para crianças’ ou ‘as crianças não entendem’ – o adulto-centrismo que caracteriza a nossa sociedade vê nas crianças meros objetos para educar, ou seres amorfos, indefesos e engraçados”, acrescenta.
Intertextos – É fato que autores brasileiros escolhidos pelo diretor não se consagraram escrevendo para crianças, embora às vezes o façam. Um recurso utilizado por José Caldas é a introdução de intertextos para facilitar a mensagem, o que fez ao montar A Menor Mulher do Mundo, de Clarice Lispector. “Eu estava angustiado com o racismo e achei que o texto servia muito bem, pois não falava da questão politicamente, mas poeticamente. Falava do sentimento de um explorador francês branco que encontra a menor mulher do mundo, uma pigméia negra, e se apaixona por ela. É um espetáculo extremamente natural, plasticamente forte e com o texto denso de Clarice. As crianças curtiram muito”.
Caldas montou outros dois escritos da brasileira, A Vida Íntima de Laura e A Mulher que Matou os Peixes, onde se faz a discussão sobre a morte. Segundo Caldas, Clarice se transformou na fonte em que bebe a recente literatura feminina portuguesa, mas a crítica a considerava, definitivamente, imprópria para crianças. “Acontece que as reações eram espantosas. Quando escolas enviam suas crianças ao teatro, temos o costume de promover uma conversa no final. E as questões que elas levantam são fundamentais, filosóficas. No conto, a autora diz que matou os peixes porque eles não falam – um gato a arranharia para pedir comida, como os peixes não dão qualquer sinal, ela se esqueceu. No texto, ela pede perdão. No público, uma criança reagiu com personalidade: não te perdôo!”.
Caldas lembra ainda a inusitada reação das crianças em A Corda Bamba, onde Lygia Bojunga Nunes conta a história de uma mendiga idosa que morre de tanto comer. A cena chocaria aos adultos, mas as crianças morreram de rir. Barba Azul e seus assassinatos em série também seria história imprópria para menores, mas o diretor quis discutir propositadamente a existência de assassinos, pois mesmo em Portugal cresce o número de mulheres mortas anualmente por seus maridos. “O marido mata a mulher no contexto onde estão as crianças”, observa a professora Joana Lopes. “Eu não queria abordar o comezinho, arte não é para isso. Por isso recorri à história que minha avó contava, com todos os detalhes sangrentos, e misturei outras versões de Barba Azul. Por que não falar de assassinos com as crianças se eles por aí?”, questiona o diretor.
Marketing – José Caldas apresentou O Medo Azul no último Encontro para Intercâmbio de Linguagem para Crianças, que reuniu no Rio grupos do Brasil, França, Canadá e Portugal. Assustou-se com a superficialidade do meio, onde a preocupação é obter verbas de patrocinadores como Petrobras, Telemar e prefeituras para produzir qualquer coisa. “Não existe uma filosofia por trás do teatro para o público jovem e os espetáculos são todos parecidos. Senti algo imoral, pois se gastou muito dinheiro para trazer esses grupos e pouquíssimas pessoas assistiram. Vi uma grande falta de respeito, puro marketing em cima das crianças. O cartaz do festival parecia coisa de Chiquititas, retratando uma criança tendo em volta um mundo de florzinhas”.
Depois da Unicamp, Caldas apresentaria sua peça em São Paulo, São Luís e Teresina. Sempre em salas de espetáculos, pois não gosta do recurso de percorrer escolas, em montagens improvisadas. “As crianças precisam ter acesso a um lugar de convívio social que o teatro lhes dá. Dentro de uma escola o espetáculo perde a metade da graça. E é bonito ver crianças que viram as sessões oferecidas a escolas durante a semana, trazendo pela mão os pais, irmãos e tios nos sábados e domingos”.
Malhação e Morangos com Açúcar
A professora Joana Lopes, que foi crítica de teatro por anos, não vê os autores brasileiros tão preocupados em atingir crianças e jovens. Ela e o diretor José Caldas recordam, no entanto, de um momento muito estimulante no período de redemocratização do país, quando participaram do esforço para a criação do Centro Brasileiro de Teatro da Infância e da Juventude (CBTIJ), com bons autores e diretores despertando para esse público. “Mas aquela onda de esperança e de estímulo intelectual foi se esvaziando, no conteúdo e na forma, que foram substituídas por um olhar caritativo da arte em relação às crianças e adolescentes. Isso se espalhou pelo Brasil, o que faz parte da ideologia neoliberal”, critica.
Joana Lopes observa que o teatro para adolescentes, por exemplo, é ausente, e que o espaço de comunicação reservado a eles é o programa Malhação, da Rede Globo, onde o cotidiano é muito bem situado na classe média. “No mais, tanto no teatro quanto na dança, os temas sobre as relações e indagações dos adolescentes inexistem”, afirma. Segundo José Caldas, que durante dez anos participou de um projeto de teatro na escola em Portugal, o agravante no programa de televisão é o de refletir o que os adultos acham que os jovens são e pensam. “Os jovens têm as mesmas preocupações existenciais e filosóficas, problemas tão complexos como dos adultos e que nada têm a ver com as idiotices que aparecem na tela”.
A série Malhação foi exibida por muitos anos em emissoras de Portugal, mas o sucesso do momento é uma imitação, Morangos com Açúcar. “As novelas brasileiras influenciaram muito na forma de vestir, na dinâmica da linguagem, nas gírias”, observa o ator e dançarino Alberto Magno, que saiu do Brasil em 1991 para dar aulas de dança na Alemanha e depois se radicou em Portugal, envolvendo-se em atividades diversas como teatro, coreografia, fotografia, organização de festivais e projetos em educação. Trabalhando muito com esse público, Magno explica que a idéia de um teatro para a infância e juventude, em termos artísticos e educacionais, ainda é muito recente em Portugal e mesmo em outros países da Europa. “As fronteiras são um tanto indefinidas, havendo inclusive mistura de linguagem, como do teatro com a dança e as artes”.
No entanto, o diretor José Caldas ressalta que logo depois da Revolução dos Cravos fundou-se o Centro Português do Teatro da Infância e Juventude, com muito mais sucesso do que o centro brasileiro. “Conseguimos mudar a cara desse teatro no país. Participamos de uma associação internacional e promovemos anualmente um festival de grupos portugueses, com a participação de artistas de várias áreas para discutir o teatro da infância e juventude. Hoje raramente aparecem espetáculos infantilizados. Os artistas começaram a ser exatamente como são: artistas adultos que trabalham para o público jovem”.
Fotos de Alberto Magno, ator e dançarino, retirada do arquivo pessoal de Romildo Ernesto de Leitão Mendes
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